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“Der Tote erbt den Lebenden” e o Estrangeirismo Indesejável
Este artigo não tem uma maior pretensão linguística, afigurando-se como
um mero desabafo e um apelo à pesquisa consciente.
Penso ser indiscutível a importância do Direito Comparado em qualquer
pesquisa jurídica que pretenda afastar a pecha da superficialidade.
A análise comparativa de sistemas estrangeiros, não apenas permite um
melhor enquadramento do objeto científico sob análise, mas, principalmente,
aperfeiçoa a sua percepção no tempo e no espaço.
Se, por exemplo, o jurista pretende desenvolver uma pesquisa em torno do
contrato de leasing, nada melhor do que buscar os referenciais históricos e
contemporâneos do instituto, não apenas no Brasil, mas em Estados que o hajam
Na mesma linha, a busca por princípios torna-se muito mais fecunda,
quando se deitam os olhos em outros sistemas.
Foi o que vivenciei, por exemplo, quando da redação do volume dedicado
ao novo divórcio1, ao me deparar com o “Zerrütungsprinzip” do Direito alemão.
Em síntese: com a entrada em vigor da nova
Emenda, é suficiente instruir o pedido de divórcio com a certidão de casamento, não havendo mais espaço para a discussão de lapso temporal de separação fática do casal ou, como dito, de qualquer outra causa específica de descasamento. Vigora, mais do que nunca, agora, o princípio da ruptura
“Zerrüttungsprinzip” do Direito alemão -, como simples fundamento para o divórcio.
Aliás, analisando a doutrina civilista brasileira, sobretudo a produzida nas
últimas décadas, é forçoso constatar, cada vez mais, a presença de institutos,
1 O Novo Divórcio, publicado pela Editora Saraiva e escrito em coautoria com Rodolfo Pamplona Filho (pág. 62), 2010.
expressões e palavras recepcionadas e utilizadas em língua estrangeira: duty to
mitigate (teoria interessantíssima, baseada no princípio da boa-fé, segundo a qual,
mesmo o titular de um direito tem o dever de atuar para mitigar o prejuízo
experimentado pelo devedor), substantial performance (ou doutrina do adimplemento
substancial, amplamente estudada no âmbito do contrato de seguro, por meio da qual
defende-se a impossibilidade de se considerar resolvido o contrato quando a prestação
desempenhada pelo devedor, posto não haja sido perfeita, aproxima-se
substancialmente do seu resultado final), disregard of legal entity (desconsideração da
pessoa jurídica), treu und glauben (expressão alemã que traduz a ideia de boa-fé
objetiva), enfim, sem mencionarmos ainda frases e locuções outras, largamente
repetidas, nas academias, fóruns e universidades do país, provenientes do latim –
língua que, posto importante, não é mais falada (venire contra factum proprium,
Impossível, para mim, em um simples e despretensioso artigo, esgotar as
dezenas, senão centenas, de expressões estrangeiras amplamente recepcionadas – e
até reverenciadas – pelos profissionais do Direito no Brasil.
Embora cultive um inegável amor pela língua portuguesa – a mais bela das
línguas – tenho consciência de que, por conta da própria interpenetração dos sistemas
normativos mundiais e da interdisciplinaridade crescente – ninguém está imune a
O que não posso aceitar, e aqui vai um desabafo, é a postura daqueles que,
como meros repetidores autômatos, reverberam expressões estrangeiras sem se
Com isso, não quero dizer que todos nós devamos conhecer todas as
Pretendo apenas conclamar, você, amigo leitor, a não aceitar uma
expressão estrangeira, sem antes buscar a sua fonte e o seu sentido.
Não me conformo com a impensada reverência ao estrangeirismo juridico.
2 Discorri sobre esses institutos na obra Novo Curso de Direito Civil – Teoria Geral dos Contratos – vol. 4, tomo 2, no capítulo V, item 6, dedicado ao estudo dos desdobramentos da boa-fé objetiva (Ed. Saraiva),
escrito em coautoria com Rodolfo Pamplona Filho.
Certa feita, quando aluno, ouvi uma pessoa, em um debate jurídico, utilizar
uma expressão estrangeira, o que fez com que o seu interlocutor – com quem
contendia – corar e calar-se, por não saber rebater aquela assertiva.
Fui, em seguida, por curiosidade acadêmica, pesquisar aquela expressão, e
Aquele sujeito - “estelionatário intelectual”, se me permitem - apenas
lançou mão de uma frase estrangeira de efeito, como recurso de retórica, para
“ganhar a discussão”, o que muito me faz lembrar dos escritos de SCHOPENHAUER:
unicamente em formular juízos verdadeiros. Para isso, deveria
pensar primeiro e falar depois. Mas, na maioria das pessoas, à
vaidade inata associa-se a verborragia e uma inata deslealdade.
Falam antes de ter pensado, e quando, depois, se dão conta de
que sua afirmativa era falsa e não tinham razão, pretendem
que pareça como se fosse o contrário. O interesse pela
verdade, que na maior parte dos casos deveria ser o único
motivo para sustentar o que foi afirmado como verdade, cede
por completo o passo ao interesse da vaidade. O verdadeiro
tem de parecer falso e o falso, verdadeiro.3
O fato de alguém citar uma expressão estrangeira, especialmente por não
derivar da nossa língua mãe, exige, do receptor da informação, a necessidade de
estudo e de pesquisa daquela assertiva, para que não seja vítima de uma falsa
percepção do conhecimento, indesejavelmente amplificada pela repetição mecânica
E graças a este hábito de pesquisa que sempre nutri, deparei-me com uma
Como é cediço, o art. 1.784 do Código Civil consagrou o denominado
Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-
se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
3 SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate sem Precisar ter Razão em 38 Estratagemas (Dialética Erística). Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, pág. 97.
De acordo com este princípio, oriundo do Direito Feudal, e amplamente
aceito no mundo, quando um sujeito morre, a sua herança é imediatamente
transmitida aos seus herdeiros legítimos e testamentários.
Trata-se, pois, de uma ficção jurídica, para evitar que, durante o tempo em
que tramita o inventário ou o arrolamento, a referida herança remanesça sem titular.
Assim, se JOÃO morre, deixando três filhos, PEDRO, MATHEUS e ALISSON,
cada um deles, no mesmo instante do óbito, passa a ser titular da fração ideal de 1/3
da herança, por força do princípio mencionado. Somente ao final do inventário (ou
arrolamento), após deduzidas as dívidas do falecido, serão individualizados os bens
É como se o vivente (o herdeiro) continuasse o direito do falecido, sem
Ao aprofundar a pesquisa sobre o tema, deparei-me com a referência feita
pela doutrina a uma expressão alemã que caracterizaria o citado princípio da saisine:
4 Ver o grande PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. VI (Sucessões), 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.15. E, na mesma linha, refere o mesmo autor, com propriedade, o talentoso
Cristiano Imhof: “23/11/2010 STJ. Art. 1.784 do CC/2002. Instituto da saisine. Evolução histórica. Sobre o
tema, destaca-se a lição de Caio Mário da Silva Pereira: Droit de saisine . Na Idade Média, institui-se a
praxe de ser devolvida a posse de bens, por morte do servo, ao seu senhor, que exigia dos herdeiros
dele um pagamento, para autorizar a sua imissão. No propósito de defendê-lo dessa imposição, a
jurisprudência no velho direito constumeiro francês, especialmente no Costume de Paris, veio a
consagrar a transferência imediata dos haveres do servo aos seus herdeiros, assentada a fórmula: Le
serf mort saisit le vif, son hoir de plus proche . Daí ter a doutrina fixado por volta do século XIII,
diversamente do sistema romano, o chamado droit de saisine , que traduz precisamente este
imediatismo da transmissão dos bens, cuja propriedade e posse passam diretamente da pessoa do
morto aos seus herdeiros: le mort saisit le vif. Com efeito, no século XIII a saisine era referida num Aviso
do Parlement de Paris como instituição vigentee os établissements de St. Louis lhe apontam a origem
nos Costumes de Orleans. Não foi, porém, uma peculiaridade do antigo direito francês. Sua origem
germânica é proclamada, ou ao menos admitida, pois que fórmula idêntica era ali enunciada com a
mesma finalidade: Der Tote erbt den Lebenden . [.] sistema atual. Com a promulgação do Código Civil
de 1916, ficou assentada a doutrina da transmissão imediata da posse e propriedade: "Aberta a
sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários" (Código Civil, art. 1.572). O mesmo princípio predominou no Projeto do Código Civil de
1965 e no Projeto de 1975, e se viu conservado no novo Código Civil, conquanto neste eliminada a
referência a "domínio e posse" (art. 1.784). É o conceito de droit de saisine que ainda vigora na sua
essência, e do qual podem ser extraídos os necessários efeitos: [.] 2. Não é o fato de ser conhecido, ou
de estar próximo que atribui ao herdeiro a posse e a propriedade dos bens. É a sucessão. Não há mister
Não há erro algum na referência que a doutrina faz, quando menciona a
O problema é que, ao buscar o sentido exato da expressão, fui colhido de
Por mais que me esforçasse em compreender o sentido da expressão
traduzida do alemão para o português, a frase não apresentava sentido algum.
Sei que uma boa tradução não se apega ao sentido isolado de cada palavra,
mormente na língua alemã, com as suas complexas declinações e o constante uso do
Todavia, mesmo assim, a frase, citada e repetida, não faria sentido algum
se convertida para o português, pois afirmaria que o “morto herda do vivo”.
Der Tote (o morto) erbt (herda) den Lebenden (do vivo).
Ora, o vivo é quem herda do morto! E não o contrário!
Não me conformei, e consultei outros estudiosos da língua alemã.5
O grande professor Arruda Alvim, dileto amigo, um dos maiores juristas
brasileiros, com domínio inclusive do alemão gótico, também externou espanto, pois,
tal como a frase é conhecida e difundida, não teria, em uma tradução fiel ao verbo
um ato do herdeiro. Não precisa requerer ao juiz o imita na posse. Esta lhe advém do fato mesmo do
óbito e é reconhecida aos herdeiros que por direito devem suceder, tal como em o direito anterior se
proclamava, adquirindo eles a posse civil com todos os efeitos da natural, e sem que seja necessário que
esta se tome (Alvará de 1954 citado). 3. O herdeiro que tem a legitimatio ad causam para intentar ou
continuar as ações contra quem quer traga moléstia à posse, ou pretenda impedir que os herdeiros nela
se invistam. Esta legitimação envolve a faculdade de defender a herança contra as investidas de
terceiros, não valendo ao esbulhador ou qualquer possuidor ilegítimo a alegação de que o herdeiro
somente cabe uma fração do monte e não a totalidade do acervo. Quer dizer: ao herdeiro, embora
somente tenha direito a uma fração da herança, é reconhecido o poder defensivo de todo o acervo. No
Código Civil de 2002, semelhante legitimação deflui do parágrafo único do art. 1.791, segundo o qual o
direito dos co-herdeiros, durante a fase de indivisão, ‘regular-se- á pelas normas relativas ao
condomínio’". (PEREIRA, Caio Mário da Silva Instituições de direito civil: Direito das sucessões. 15ª ed.
http://www.cc2002.com.br/imprimir.php?id=1279&ergo=print_noticia acessado em 14 de junho de
5 Fica aqui o meu registro de agradecimento pelas agradáveis discussões acerca da linguística alemã com os diletos Cássio Frederico Pereira, mestrando pela USP, e Oliveiros Guanais de Aguiar Filho, Procurador
Destaco trecho de correspondência que me fora enviada pelo culto
Na realidade, a frase, se for traduzida literalmente
leva a um resultado inverso do que pretende significar. Não é o morto que herda, senão que é o herdeiro que herda. Talvez, uma tradução melhor, ainda que pouco eufônica --- para respeitar esse instituto --- seria a de que O morto faz o herdeiro herdar. Mas na verdade, isto é forçar. Em alemão correto, consta do The Free Dictionary by Farlex a frase: "Die Tochter beerbt ihre Eltern", ou seja, a filha herda dos seus pais. Há também uma outra linguagem do alemão para o alemão, ou seja, a partir do texto frances Le mort saisit le vif (der Tote "ergreift" den Lebendigen, d. h. den Erben). Ou seja, troca-se o verbo erben/erbet por ergreifen/ergreift, ou seja, O morto apanha/alcança
http://www.retrobibliothek.de/retrobib/seite.html?id=105134). Na Áustria liga-se o texto ao Prinzip des unmittelbaren Erbanfalls – „Der Tote erbt den Lebendigen“. Na verdade, a função jurídica desse princípio, seja na França, seja na Alemanha, é a de não permitir que entre a morte e a assunção da herança haja um espaço vazio. Mas, literalmente, pode uma tradução assim feita, levar a confusão.6
De fato, o único sentido possível da frase, a despeito da sua literalidade
confusa, é atribuir-lhe uma via inversa de intelecção, para se afirmar que o vivo herda do morto.
Ora, certamente, deve haver alguma explicação, talvez histórica, perdida
Não pretendo, aqui, como disse no início deste modesto artigo, tecer
considerações meramente gramaticais. 6 Correspondência datada de 24 de abril de 2012.
7 Também na doutrina germânica, a dita frase, verdadeiro princípio, é citada, ainda que o autor, talvez pela sua redação confusa, cuide de tentar emprestar-lhe sentido: “Damit wurde mit der alten germanischen Regelung gebrochen, nach der es keiner Annahme der Erbschaft bedurfte, da der Grundsatz galt: der Tote erbt den Lebenden, was bedeutet, daß der Tote den Lebendigen im Sinne einer Übereignung zum Erben macht” (Steffen Breßler: Gesetzliche Erbfolge, Testament und Pflichtteil im Freiburger Stadtrecht, fonte: http://fhi.rg.mpg.de/seminar/0001bressler.htm, acessado em 14 de junho de 2012) (grifei).
Quero, apenas, conduzir o leitor, especialmente os meus alunos, a um
raciocínio que valorize o amor pela pesquisa, e não incentive a mera repetição de
Como visto, ao aprofundar o estudo da referida frase, abriu-se para mim
um portal de indagações pertinentes e de alta profundidade jurídica.
Tudo a reforçar mais uma vez a velha lição de que o Direito se reconstrói
E de que, ainda que estudemos a mesma matéria diversas vezes, um novo
CONCLUIU A GRADUAÇÃO NA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, EM
SOLENIDADE OCORRIDA EM 1998, TENDO RECEBIDO O DIPLOMA DE HONRA AO MÉRITO (LÁUREA), PELA
OBTENÇÃO DAS MAIORES NOTAS AO LONGO DO BACHARELADO. É PÓS-GRADUADO EM DIREITO CIVIL PELA
FUNDAÇÃO FACULDADE DE DIREITO DA BAHIA, TENDO OBTIDO NOTA DEZ EM MONOGRAFIA DE
CONCLUSÃO. É MESTRE EM DIREITO CIVIL PELA PUC-SP, TENDO OBTIDO NOTA DEZ EM TODOS OS
CRÉDITOS CURSADOS, NOTA DEZ NA DISSERTAÇÃO, COM LOUVOR, E DISPENSA DE TODOS OS CRÉDITOS
PARA O DOUTORADO. FOI APROVADO EM PRIMEIRO LUGAR EM CONCURSOS PARA AS CARREIRAS DE
PROFESSOR SUBSTITUTO E PROFESSOR DO QUADRO PERMANENTE DA FACULDADE DE DIREITO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, E TAMBÉM EM PRIMEIRO LUGAR NO CONCURSO PARA JUIZ DE DIREITO
DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA BAHIA (1999). É AUTOR E COAUTOR DE VÁRIAS OBRAS JURÍDICAS,
INCLUINDO O NOVO CURSO DE DIREITO CIVIL (SARAIVA). É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA
BAHIA, E DA REDE JURÍDICA LFG. JÁ MINISTROU AULAS, CURSOS E PALESTRAS EM DIVERSOS TRIBUNAIS DO
PAÍS, INCLUSIVE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
www.pablostolze.com.br ou www.novodireitocivil.com.br
Scientific Contributions Isolated Systolic Hypertension Prognostic Information Provided by Pulse Pressure Michael J. Domanski, Barry R. Davis, Marc A. Pfeffer, Mark Kastantin, Gary F. Mitchell Abstract —Increased arterial stiffness results in increased characteristic impedance of the aorta and increased pulse wave velocity, which increases systolic and pulse pressures. An associatio
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