Veículo:O Estado de S.Paulo – coluna Espaço Aberto Data: Julho/2011 A soma e o resto Fernando Henrique Cardoso
Tomo de empréstimo o título de um livro de Henri Lefebvre, escritor francês que rompeu
com o Partido Comunista em 1958 e publicou suas razões para tanto neste livro de 1959.
Anos mais tarde, em 1967/68, fui colega de Lefebvre em Nanterre quando demos início,
junto com Alain Touraine, Michel Crozier e com o então quase adolescente Manuel
Castells a uma experiência de renovação da velha “Sorbonne”, na área das ciências
humanas. Sempre gostei do título do livro de Lefebvre e agora, ao escrever estas linhas –
sem qualquer pretensão a devaneios psicanalíticos – me recordo também que Lefebvre
tinha uma grande semelhança física com meu pai. Mas o fato é que há momentos para
fazer um balanço. No caso, Lefebvre descontava o que o Partido Comunista lhe tirara ou
ele do mesmo e via o que sobrava: a experiência dramática das revelações que Kruchev
fizera dos horrores estalinistas, somadas à invasão da Hungria, provocaram uma
remexida crítica na intelectualidade europeia, que não deixou de afetar a brasileira e a
Hoje, ao completar oitenta anos, diante do fato inescapável de que o tempo vai passando
e às vezes não deixa pedra sobre pedra, eu, que não sou dado a balanços de mim
mesmo (e nem dos outros), senti certa comichão para ver o que resta a fazer e a soma
das coisas que andei fazendo. Mas, não se assuste o leitor: o espaço de uma crônica não
dá para arrolar o esforço de oito décadas para tentar construir algo na vida, quanto mais
para alistar o muito de errado que fiz, que pode superar as pedras que eventualmente
ficaram em pé. Além do mais, prefiro olhar para frente a mirar para trás. Quando algum
repórter me pergunta o que acho que ficará de mim na História, costumo dizer, com o
realismo de quem é familiarizado com ela, que daqui a cem anos provavelmente nada,
talvez um traço dizendo que fui presidente do Brasil de 1995 a 2003. Quando insistem em
que fiz isso ou aquilo, outra vez meu realismo – não pessimismo nem hipocrisia de
modéstia – pondera que, no transcorrer da história, quem sobra nela é visto e revisto
pelos pósteros ora de modo positivo, ora negativo, dependendo da atmosfera reinante e
da tendência de quem revê os acontecimentos passados. Portanto, melhor não nos
deixarmos embalar pela ilusão de que há pedras que ficam e que serão sempre laudadas.
Além do mais, dito com um pouco de ironia, se o julgamento que vale para os homens
políticos e mesmo para os intelectuais é o da História, de que serve o que digam de nós
Pois bem, se é assim, se o que vale é o agora, não tenho palavras para agradecer a
tantos, e foram muitos, os que se referiram mim com generosidade neste passado mês de
junho. Mesmo sabendo, repito, da efemeridade dos juízos, é bom escutar pessoas
próximas, não tão próximas e mesmo distanciadas por divergências, procurarem ver mais
o lado bom, quando não apenas ele, e expressarem opiniões que me deixaram lisonjeado
e, a despeito de meu realismo, quase embalado na ilusão de que fiz mais do que penso
ter feito. Como não posso agradecer a cada um pessoalmente, nem desejo deixar de lado
alguém nem os muitos que me disseram pessoalmente palavras de estímulo ou as
registraram por cartas, e-mails ou na web, aproveito esta página de jornal para reiterar
que não sei como exprimir o quanto a solidariedade dos contemporâneos me emocionou.
Não posso me queixar da vida. Vivi a maior parte do tempo dias alegres, mesmo que
muitas vezes tensos. Assim como senti as perdas que fazem parte de sobreviver. Perdi
muita gente próxima ou que admirava à distância nestes oitenta anos. Pais, irmãos,
mulher, amigos, amigas, companheiros de vida acadêmica e política. Ainda agora, para
que nem tudo fosse rosas, perdi às vésperas de meu aniversário um companheiro de
universidade com quem convivi cerca de cinquenta anos, Juarez Brandão Lopes. E no
momento em que escrevo estas linhas veio a notícia da morte de Paulo Renato Souza,
companheiro, colaborador, grande ministro da Educação, colega de exílio. As perdas,
para quem está vivo, são relativas. Aprendi a conviver na memória com as pessoas
queridas e mesmo com algumas mais distantes com as quais “converso” vez por outra no
imaginário para reposicionar o que penso ou digo. Tomo em conta o que diriam os que
não estão mais por aqui, mas deixaram marcas profundas em mim. Na soma, não cabe
dúvida, mantive mais amigos que adversários. Não sinto rancor por ninguém, talvez até
por uma característica psicológica, pois esqueço logo as coisas de que não gosto e
procuro me lembrar das que gosto e pelas quais tenho apego.
Por fim, para não escrever uma página muito água com açúcar, se me conforta ter tantos
amigos e receber deles tanto apoio e se prezo a amizade acima de quase tudo, devo
confessar que apesar de meu pendor intelectual ser forte, no fundo, sou um homo politicus. Herdado de meus pais e de algumas gerações de ancestrais, vivo a vida na
tecla do serviço ao público, da polis, e para mim o público hoje não é apenas o brasileiro,
mas tem uma dimensão global. Pode parecer “coisa de velho”, mas o fato é que a esta
altura da vida estou convencido, sem prejuízo das crenças partidárias e ideológicas, de
que cada vez mais, como humanidade, como cidadão e como seres nacionais,
simultaneamente, estamos nos aproximando de uma época na qual ou encontramos
alguns pontos de convergência, uma estratégia comum para a sobrevivência da vida no
planeta e para a melhoria da condição de vida dos mais pobres em cada país, ou haverá
riscos efetivos de rupturas no equilíbrio ecológico e no tecido social.
Não é o caso de especificar as questões neste momento. Mas cabe deixar uma palavra
de advertência e de otimismo: é difícil buscar caminhos que permitam, em alguns temas,
uma marcha em comum, mas não é impossível. Tentemos. Vi tanta boa vontade ao redor
de mim nestas últimas semanas que a melhor maneira de retribuir é dizendo: espero
poder ajudar a todos e a cada um a sermos mais felizes e dispormos de melhores
condições de vida. Guardarei as armas do interesse pessoal, partidário ou mesmo dos
egoísmos nacionais sempre que vislumbrar uma estratégia de convergência que permita
dias melhores no futuro. Com confiança e determinação, eles poderão vir.
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